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Mexmo, caxca, excola, hixtória e coxtume.
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Essa é conhecida como a maior característica
do sotaque dos cariocas como eu: o chiado.
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"Fala isqueiro?
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Isqueiro
00:00:10
Fala escola?
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Escola, pô"
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"Esqueci a mochila"
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"Esqueci o isqueiro e o
biscoito na esquina da escola"
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Esse chiado é motivo de orgulho para
quem é do Rio de Janeiro, mas também
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pode gerar estranhamento/ruído em quem é de fora.
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Nos comentários dos vídeos que eu apresento
para BBC, tem gente que não gosta.
00:00:25
Mas apesar de hoje em dia essa
ser a marca do sotaque do Rio,
00:00:29
por muito tempo os cariocas não falavam assim.
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Na verdade, o chiado não é invenção
nem exclusividade do Rio de Janeiro.
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Eu sou João da Mata, da BBC News Brasil,
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e neste vídeo eu vou te explicar
por que o chiado acontece...
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"A gente chama isso de uma fricativa pós-alveolar"
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... buscar as raízes históricas
que vêm da corte portuguesa,
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"1808 certamente foi um evento muito importante"
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... e te ensinar quais são os outros detalhes
que fazem o carioquês ser um sotaque tão famoso.
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"Fatores, assim, bastante emblemáticos"
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Para começar, dá uma olhada nesse mapa com
dados das capitais do Brasil. O mapa mostra
00:01:02
os lugares do país em que o som do S no meio
o no final de uma sílaba é chiado. Quanto mais
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cheio ficam as barrinhas amarela e vermelha,
maior a porcentagem de falantes que chia.
00:01:12
Na verdade, na maior parte do
país, o som mais comum soa como...
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O nome que a linguística dá para
esse som é fricativa alveolar.
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É como falam a maioria dos paulistas...
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... dos mineiros...
00:01:27
... ou dos baianos...
00:01:32
Só que no Rio de Janeiro, na hora de pronunciar
o S, os cariocas fazem um som diferente.
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A gente diz mexmo, excola, coxtume
e por aí vai. Por que isso acontece?
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O termo que os linguistas usam para esse
processo é palatalização. O nome vem de palato,
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a parte do céu da boca logo
atrás dos dentes superiores.
00:01:49
Ou seja, a palatalização é quando
uma consoante muda de som porque seu
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ponto de articulação se aproxima do céu da boca.
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O ponto de articulação é o
local da boca onde acontece
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o bloqueio ou restrição do fluxo
de ar durante a produção do som.
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Com isso, o som de... acaba
virando... que é parecido com X ou CH
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Usando os termos linguísticos, a fricativa
alveolar se torna uma fricativa pós-alveolar.
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"Carioca não sabe falar isqueiro
e chiqueiro junto, vai..."
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"Isqueiro, chiqueiro"
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"Isqueiro, chiqueiro"
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A palatalização é mais comum do que você
imagina. No nosso português brasileiro,
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tem um exemplo que você vai reconhecer.
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Grande parte dos brasileiros diz
tchia e dchia, em vez de tia e dia,
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como é comum no português de Portugal
e em algumas regiões do Brasil.
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"É muito mais comum, quando
pensamos no português do Brasil,
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ou queremos imitar o português do
Brasil, começamos a palatalizar t
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e d. Dizemos tia e dia. Em Portugal,
nós não temos essa palatalização"
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Essa palatalização normalmente acontece
por causa do que vem antes ou depois do
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som em questão. No caso do /t/ e do /d/, costuma
acontecer quando é seguido de /i/ - tia e dia.
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A gente entendeu o que é o chiado,
mas como ele chegou no Rio?
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Eu fui atrás das raízes históricas,
e descobri que, apesar de o chiado
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não ser generalizado aqui no Brasil,
ele é muito mais comum em Portugal.
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"Isto acontece em todo português europeu"
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Mas nem sempre foi assim.
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Até o século 17, o S chiado
não existia no português de
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Portugal - eles falavam mas, faz e traz.
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Por isso, essa é a forma mais difundida
no português brasileiro até hoje.
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O chiado só começou a aparecer no sul de Portugal
no fim do século 17. As razões para isso ainda não
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são claras, mas fato é que a mudança se
espalhou pelo país no decorrer dos anos.
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Aí, em 1808, a Corte portuguesa chega
ao Brasil fugindo de Napoleão Bonaparte.
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E essas pessoas trouxeram consigo o chiado.
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Foi uma novidade para os brasileiros.
Inclusive para os cariocas,
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que ainda não falavam assim na época.
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Uma hipótese é que chiado pegou no Rio de Janeiro
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por estar associado a um jeito de falar
mais elitizado, nobre, ligado à Corte.
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"As pessoas imitam. Se torna uma
coisa que começa só como imitação,
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mas acaba se tornando uma coisa generalizada. "
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Os cariocas foram imitando o chiado da Corte e,
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com o passar dos anos, a pronúncia
foi se incorporando ao sotaque.
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No seminal livro O linguajar carioca,
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de 1922, o linguista Antenor Nascentes já
descreve o S chiado como uma marca do Rio.
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Hoje em dia, como dá para ver no mapa,
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esse som é feito por praticamente
todos os falantes da cidade.
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Mas o chiado não é coisa só do Rio.
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De fato, o chiado é minoritário
nas capitais do Brasil.
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Mas é majoritário em
Florianópolis e em Belém do Pará.
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O mapa também mostra que o
S é chiado majoritariamente,
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mas em menor grau, em Recife, Manaus e Macapá.
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"São todos próximos a grandes portos. É um sotaque
do litoral. São importantes centros de comércio,
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de movimento marítimo. Por essa
via que os contatos foram feitos."
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Mas olha só que curioso.
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Esse mapa mostra o grau de chiamento
do S dependendo da consoante que
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vem em seguida. Olha como as barrinhas
estão mais cheias. Isso quer dizer que,
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pelo menos em algumas palavras, a maior parte
dos falantes das capitais brasileiras chia.
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Isso acontece porque os sons de t e d
influenciam o do S, que acaba virando um X.
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Por isso, um paulistano pode
falar... e um baiano pode falar...
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Isso significa que o S não é
tão exclusivo dos cariocas.
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Mas, então, o que faz o sotaque do Rio ser
tão marcante? A resposta não é tão simples.
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É que um sotaque não é formado por
uma só característica - mas várias.
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Por exemplo, presta atenção em como um carioca
fala faix ou meixmo. Ele não apenas chia,
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mas adiciona uma vogal a mais no meio da palavra.
É o que os linguistas chamam de ditongação.
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"É como se o chiado viesse acompanhado da
inserção dessa semivogal i. Em faz, nós"
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A ditongação também pode acontecer também quando o
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carioca diz alô ou escola. Em vez do i,
ele coloca um a que alonga a palavra.
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"Na verdade, o que a gente tem na fala
carioca é um alongamento muito marcado"
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O jeito de o carioca pronunciar o R no
final de uma sílaba também é peculiar.
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O R carioca não é retroflexo, comum
no interior de São Paulo e Minas...
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Nem o R tepe, da capital paulista
ou do Rio Grande do Sul...
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Também é diferente do R falado
na maior parte do Brasil,
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que tem som parecido com a letra H
em línguas como o alemão e o inglês.
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É um R que soa mais arranhado
- porta, corte, termômetro.
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"É muito parecido com a maneira
como o francês parisiense é falado"
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Essa semelhança com a França não é coincidência.
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Desde o Renascimento, a França teve uma
influência cultural enorme na Europa
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Ocidental. E essa influência é
percebida também na fonética.
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Uma teoria é de que o português europeu
foi influenciado pelo R arranhado dos
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franceses. E assim com o S chiado, esse
som chegou em peso no Brasil em 1808.
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Esse R carioca muitas vezes
pode até substituir o S chiado.
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Cariocas podem falar mermo em vez de
mesmo, ou dér reais em vez de dez reais.
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"Quando alguém quer caracterizar um carioca,
diz que o carioca fala 'é mermo'. Tem uma
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explicação linguística para isso. Quando
você tem sempre uma consoante sonora depois,
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a possibilidade de você ter essa aspiração é muito
maior de quando você tem um seguimento surdo"
00:07:17
Tem ainda uma série de expressões e formas de
falar que variam a depender das características
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do falante: região, escolaridade, classe
social, contexto, sexo e por aí vai.
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Estou falando aqui de gírias específicas…
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"Já é, mano, vou brotar. Coé, mané. Fé"
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"O ainda serve para afirmar algo
que alguém me perguntou. Coé Ruan,
00:07:36
vamos jogar bola, aí eu vou
responder para ele: ainda"
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Ou até mesmo em falar tu em vez
de você, em algumas situações…
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"Papo reto, tu é mó caozeiro mermão, esquece"
00:07:46
O fato é que o sotaque do Rio,
como o de qualquer outro estado,
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é formado por um conjunto de características -
só o S chiado não explica como o carioca fala.
00:07:54
E nenhuma dessas formas de falar
pode ser considerada certa ou errada.
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E também não existe isso de falar com
ou sem sotaque. Todo mundo tem o seu,
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por mais que não perceba.
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Bom, esse é o primeiro episódio da nossa série
sobre sotaques do Brasil. Se você gostou,
00:08:07
curta o vídeo e deixe aqui seu
comentário perguntando o que
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mais você quer saber sobre os sotaques do Brasil.
00:08:12
Um abraço, até a próxima e 'é nós'.